Resiliência alimentar global expõe dilemas do Brasil

Relatório da KPMG destaca coragem para redesenhar negócios frente às crises climáticas, tensões geopolíticas e mudanças no comportamento do consumidor

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Divulgado nesta terça-feira, 26, o relatório global da KPMG sobre agroalimentação lança luz sobre a urgência de repensar o sistema alimentar mundial e expõe o Brasil como um caso emblemático de dualidade: potência agrícola e, ao mesmo tempo, território marcado por desigualdade estrutural e pressões ambientais severas. Intitulado Reimagining Global Food System Resilience (Reimaginando a resiliência do sistema alimentar global), o documento apresenta apresenta uma visão ampla sobre as vulnerabilidades e oportunidades do sistema agroalimentar.

A publicação destaca que diante de crises climáticas, tensões geopolíticas e mudanças no comportamento do consumidor, “o que é necessário para alimentar a população global atual não é mais comida, mas sistemas mais inteligentes e a coragem de redesenhar modelos de negócio”. Ao conectar essas questões, o relatório propõe uma reflexão sobre o futuro da alimentação sob a perspectiva da resiliência, cujo conceito envolve eficiência, sustentabilidade e equidade.

Em outras palavras, para alimentar não basta aumentar a produção, sobretudo, nos moldes atuais, é preciso construir uma rede agroalimentar menos frágil, mais adaptável e que distribua valor de forma justa entre produtores, consumidores e governos. Para isso, o documento coloca em evidência temas estratégicos, como a necessidade de novas tecnologias digitais até a urgência em frear o desmatamento associado a cadeias de produção tradicionais.

“As organizações estão profundamente conectadas aos sistemas agroalimentares como produtoras, processadoras, financiadoras, fornecedoras, seguradoras ou transportadoras. Os alimentos desempenham um papel fundamental na vida diária de cada pessoa, o que requer uma colaboração das empresas de diversos setores como tecnologia, saúde, finanças, energia e do governo na resolução dos desafios como a regeneração ambiental e disrupções geopolíticas”, avalia o sócio-líder de consumo e varejo da KPMG no Brasil e na América do Sul, Fernando Gambôa.

Resiliência alimentar e estabilidade econômica

O relatório da KPMG ressalta que a transformação agroalimentar não é uma opção, mas uma necessidade estratégica. Isso significa que empresas e países que não se adaptarem correm o risco de perder competitividade, acesso a mercados e até financiamento. Portanto, executivos, investidores e líderes do setor de varejo, indústria e franchising não devem mais ignorar a relação direta entre resiliência alimentar e estabilidade econômica.

Como explica o documento, conversas sobre sistemas alimentares sustentáveis frequentemente falham em abordar as necessidades dos mais vulneráveis. A verdadeira resiliência vem de sistemas projetados para apoiar todos, especialmente aqueles em maior risco. De acordo com essa perspectiva, não basta apenas atender às demandas dos consumidores mais exigentes, mas garantir que o sistema como um todo seja capaz de suportar crises sem colapsar, seja por falta de insumos, por eventos climáticos extremos ou por barreiras geopolíticas.

Como estratégias da resiliência agroalimentar, o estudo aponta para quatro ações importantes de serem adotadas:

  • Diversificação de fornecedores e mercados para reduzir riscos de concentração;
  • Investimentos em inovação agrícola, como agricultura regenerativa, proteínas alternativas e biotecnologia;
  • Colaboração multissetorial entre governos, indústrias e investidores para construir sistemas alimentares mais fortes; e
  • Modelos de governança mais transparentes e integrados para aumentar a confiança de stakeholders.

Tendências globais destacadas

O relatório apresenta dez alavancas estratégicas que devem orientar a transformação do sistema alimentar para um futuro mais resiliente. Cada uma delas responde a um ponto de fragilidade atual e indica caminhos de ação para governos, empresas e investidores. São elas:

  1. Tecnologia e digitalização: uso de IA, blockchain, sensores e análise de dados para rastreabilidade, eficiência e redução de desperdícios.
  2. Financiamento sustentável: acesso a crédito e investimento condicionado a práticas ESG, com destaque para green bonds, blended finance e crédito agrícola sustentável.
  3. Governança e transparência: necessidade de estruturas regulatórias claras, padronização de métricas e maior prestação de contas em toda a cadeia de valor.
  4. Equidade e inclusão: integração dos pequenos produtores e comunidades vulneráveis, garantindo que políticas públicas e incentivos não ampliem desigualdades.
  5. Adaptação às mudanças climáticas: estratégias de mitigação e resiliência frente a secas, enchentes, eventos extremos e instabilidade climática crescente.
  6. Diversificação de cadeias de suprimento: redução da dependência de poucos fornecedores e mercados, ampliando fontes de matérias-primas e destinos de exportação.
  7. Inovação agrícola e proteínas alternativas: desenvolvimento de práticas regenerativas, biotecnologia, agricultura vertical, alimentos a base de plantas (plant-based) e cultivados em laboratório.
  8. Gestão do uso da terra e da água: políticas para frear o desmatamento, otimizar recursos hídricos e combater a degradação do solo.
  9. Colaboração multissetorial: articulação entre governos, empresas, ONGs e centros de pesquisa para acelerar a transição sustentável.
  10. Mudança no comportamento do consumidor: crescente demanda por alimentos saudáveis, rastreáveis e produzidos de forma ética, pressionando a cadeia produtiva.

Esse conjunto de tendências reforça que a resiliência não será construída de forma isolada, mas por meio da integração de fatores tecnológicos, financeiros e ambientais.

Brasil: potência e fragilidade

Entre os muitos exemplos analisados, o Brasil aparece como um case emblemático de dualidade: de um lado, uma potência agrícola, de outro, palco de desigualdades fundiárias e pressões ambientais. O relatório destaca a concentração de terras como um problema estrutural do País.

Segundo a descrição do documento, “no Brasil, os menores 80% das fazendas ocupam apenas 13% da terra, enquanto os maiores 0,3% utilizam mais de 30% da área agrícola”, evidenciando a distância entre pequenos produtores e os grandes players voltados para o mercado global. O documento, porém, não destaca o tamanho das propriedades unicamente, mas o fato de que a parte relevante da segurança alimentar local está sob a responsabilidade dos pequenos produtores.

Além disso, a KPMG chama atenção para o impacto dos subsídios agrícolas no Brasil ligados à pecuária e à soja, culturas que aceleraram o desmatamento. De acordo com o relatório, 70% da terra desmatada no País foi convertida em pastagem entre 2005 e 2018.

O trecho deixa claro a importância de rever políticas públicas para o setor, especialmente as que geram subsídios, e seu efeito direto no meio ambiente e em dissonância com a resiliência do sistema agroalimentar. O alerta é claro: modelos que reforçam práticas insustentáveis podem até gerar ganhos imediatos de produção, mas fragilizam o sistema no longo prazo.

Internamente, a discussão beira a um barril de pólvora e coloca todo sistema político em situação indigesta. O Brasil é um dos maiores exportadores de commodities agrícolas do mundo, liderando em volume de itens negociados, mas enfrenta cada vez mais questionamentos sobre a origem da cadeia produtiva e das práticas de justiça social no campo.

Na prática, isso significa que, para manter relevância e competitividade global, será cada vez mais necessário avançar em:

  • Modelos de produção regenerativos, que reduzam o impacto ambiental;
  • Inovação tecnológica aplicada ao campo, com soluções de rastreabilidade e eficiência; e
  • Políticas de incentivo alinhadas às metas de biodiversidade, evitando distorções que ampliam o desmatamento.

O documento da KPMG deixa uma mensagem objetiva para  líderes empresariais e gestores de capital sobre o agronegócio: no mundo que se desenha, o volume exportado não é mais suficiente para medir riquezas, pois os compradores, na outra ponta, estão mais atentos à rastreabilidade e à pegada ambiental dos produtos.

Bancos e fundos globais já condicionam financiamentos à adoção de práticas sustentáveis, que envolvem a rastreabilidade dos itens adquiridos, sobretudo, dos alimentos. E os consumidores internacionais, especialmente na Europa, exigem garantias de que a produção não esteja associada ao desmatamento. A pressão ocorre em cadeia.

Narrativa de futuro

Para reverter a atual posição, o Brasil pode se destacar com vantagem competitiva se integrar à sua estratégia de produção agrícola três frentes: sustentabilidade, tecnologia e equidade. Isso significa:

  • Apoiar pequenos agricultores com acesso a crédito e tecnologia;
  • Incentivar práticas agrícolas que regenerem o solo e preservem a biodiversidade; e
  • Garantir que a expansão agrícola ocorra sem comprometer biomas sensíveis, como a Amazônia e o Cerrado.

Ao adotar os novos padrões globais para o agroalimentar, o Brasil, conforme o relatório da consultoria, voltaria a ocupar posição de liderança e de referência neste setor. O País está sendo observado de perto por lideranças internacionais que observam que a forma de produção extrativista é insustentável frente às crises ambientes, sociais e econômicas.

Em última instância, o texto projeta que o Brasil será observado de perto: suas escolhas políticas e empresariais terão repercussões não apenas internas, mas em toda a cadeia agroalimentar global.

“À medida que a população mundial aumentou e as exigências alimentares evoluíram, o sistema agroalimentar global progrediu, e a contínua evolução deste ecossistema depende da harmonia entre a agricultura e a natureza. Portanto, é fundamental incorporar elementos como as mudanças climáticas no radar de riscos para garantir o ciclo virtuoso de crescimento”, finaliza a sócia-líder do setor de Agronegócio da KPMG no Brasil, Giovana Araújo.

Imagem: Freepick